segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cientistas reclamam do processo para patentear suas criações


Segue matéria de hoje sobre as queixas de cientistas nacionais com a burocracia das patentes, e com certas distorções como estrangeiros que patenteiam plantas brasileiras (como a Body Shop inglesa e a Asahi, japonesa).

Na verdade, o problema não é só a burocracia, ou um estrangeiro se apresentar como dono do cupuaçu. É mais profundo. É a vida e o conhecimento terem dono e só chegarem a nós quando, e do jeito, que for do interesse de um monopólio.

Hoje muitos tratam como troglodita o PhD formado com dinheiro público que teima em produzir tecnologia para a sociedade, em vez de direcioná-la
(já que as indústrias nacionais em geral não se interessam) para o gosto de uma multinacional.

A lógica subjacente à postura dos consultados nesta matéria é que a inovação, mesmo produzida por instituições e com dinheiro públicos, não irá para a frente no Século XXI se não for para vendê-la com direitos de exclusividade.

Por medo de perderem o tal do bonde da história, porém, deixam de enxergar outros meios e caminhos.

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Correio Braziliense, 24/10/2011 08:00

Cientistas reclamam do longo e burocrático processo para patentear criações
Marcelo da Fonseca

Belo Horizonte — Contratos de inovação assinados com grandes empresas, investimentos e parcerias firmados com apoio do governo federal e a satisfação de descobrir algo que pode mudar a vida de muita gente. São muitos os motivos que levam professores e cientistas a passar várias horas dentro de laboratórios atrás de fórmulas e produtos nunca antes criados ou imaginados. No entanto, para conseguir os resultados e, até mesmo, o apoio que poderá ser fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, é preciso percorrer um longo caminho de estudos e passar por uma das etapas mais difíceis que vai garantir a proteção e os direitos de uso do invento: a concessão da patente. O processo pode durar mais de uma década e, em alguns casos, a cobrança por resultados acadêmicos nos estudos desenvolvidos nas universidades se torna um obstáculo a mais para os cientistas.

O físico Daniel Medeiros integra a equipe do Núcleo de Inovação Tecnológica (Pro-NIT) da Universidade de São Paulo (USP) e conhece bem os desafios que os pesquisadores enfrentam no dia a dia. “A maior dificuldade é que, durante o processo de pedido das patentes, nosso objetivo é proteger o produto; mas a universidade tem a missão de gerar conhecimento, e as pesquisas acadêmicas precisam ser publicadas e divulgadas. Só que, ao publicar um artigo ou uma tese sobre o tema, acabamos perdendo a novidade, um requisito importante na análise do pedido”, explica. Medeiros aponta também a grande diferença entre os incentivos para pesquisadores brasileiros e de outros países, onde a relação entre os centros de excelência e as grandes empresas é mais avançada. “Percebo que a preocupação com as inovações recebe muito mais atenção dos grupos privados. Claro, o Brasil está avançando bastante, com cada vez mais apoio para novas tecnologias, mas por aqui o mercado ainda não consegue absorver nossos trabalhos como no exterior”, pontua.

Para o professor e pesquisador na área de química orgânica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Cláudio Luis Donnici, além da demora para receber as definições sobre os pedidos, outro ponto que atrasa os cientistas brasileiros é a falta de conhecimento sobre muitos termos exigidos na parte burocrática do processo. “São termos legais e jurídicos que não temos o costume de usar, por isso é fundamental que as universidades invistam em pró-reitorias e centros de tecnologia com capacidade de auxiliar os professores e os alunos. No nosso caso, essa ajuda permitiu que passássemos pela parte técnica e elaborássemos um relatório que enviamos às esferas nacionais. É preciso que mais centros atuem dessa forma”, alerta o pesquisador.

No primeiro semestre deste ano, Donnici participou de um grupo de estudos que descobriu um composto capaz de dissolver praticamente qualquer material orgânico ou inorgânico sem alterar a composição química de uma amostra  submetida a análise química. Isso significa que o novo composto poderá, por exemplo, mostrar se um cosmético ou um alimento contém metal pesado ou se a casca de uma árvore a ser usada para produzir medicamentos está contaminada. Os pesquisadores já depositaram o pedido de patente, e a substância, registrada com o nome de Universol, está pronta para ser aplicada e ter sua tecnologia transferida a empresas que poderão produzir e comercializar o produto em larga escala.

Quadro atual

No Brasil, o movimento mais intenso, segundo dados do Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (Inpi), está ligado às pesquisas de indústria farmacêutica, mas as grandes empresas de outros setores têm aumentado significativamente a participação nos registros de patentes. Hoje, a Petrobras tem 1.253 pedidos de patentes no Brasil e 2.530 no exterior. A Vale, por sua vez, tem cerca de 2,4 mil pedidos, entre contratos de inovação e direitos de preferência para o uso de tecnologias.

O Inpi é o responsável pelo gerenciamento dos inventos licenciados no país. A legislação brasileira determina que a titularidade de todas as tecnologias desenvolvidas por professores, alunos e servidores pertence às instituições e, quando negociados os direitos de cada invenção, os recursos são divididos entre as partes envolvidas.

Em Minas Gerais, a Coordenadoria de Transferência de Inovação Tecnológica (CTIT), centro ligado à UFMG, conduziu, desde 2003, 82 licenciamentos que incluem não apenas patentes, mas outras formas de propriedade intelectual, como know-how, software e desenho industrial. “Além das propriedades já garantidas, temos outras 15 em fase de negociação, com grande interesse de países como França, Japão e Estados Unidos nas áreas de biotecnologia, fármacos e saúde animal. Estamos conseguindo facilitar ao máximo o processo de registro dos pesquisadores e fazemos a mediação com o setor industrial para buscar interesse e apoio, por meio de convênios de parceria ou contratos de transferência tecnológica”, explica o diretor do CTIT, o físico Ado Jorio de Vasconcelos.

Etapas

1 - Pesquisadores que criam alguma tecnologia ou projeto levam suas propostas até os institutos e as coordenadorias das instituições onde trabalham e cadastram a ideia apresentada.
 
2 - Uma equipe técnica dos centros de pesquisa fica responsável pela análise da proposta — viabilidade, interesse de mercado e pesquisas relacionadas na área — e oferece apoio na parte burocrática para oficializar o pedido de registro.
 
3 - A invenção ou pesquisa é inscrita pelas instituições regionais no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi).
 
4 - A autarquia federal vinculada ao Ministério de Indústria e Comércio Exterior fica responsável por registrar o pedido e conceder autorização para a patente. Em média, essa etapa dura entre oito e 10 anos, mas a autorização para que os pesquisadores possam negociar a invenção pode sair até um ano e meio depois do pedido.
 
5 - A negociação com empresas é feita com apoio dos centros de pesquisas das empresas ou das universidades. Podem ser firmados convênios de pesquisa (quando a empresa patrocina a pesquisa antes do resultado), convênios de transferência (a tecnologia é repassada para a empresa, com exclusividade ou não) ou sobre condições de royalties (caso em que os inventores recebem recursos pelo uso, por parte das empresas, de suas invenções).

Para saber mais:

Briga pelo cupuaçu

Fruto de uma árvore de pequeno a médio porte que pertence à mesma família do cacau, o cupuaçu foi uma das fontes primárias de alimento na Floresta Amazônica para populações indígenas. A polpa, que é usada para fazer sucos, cremes e geleias, faz grande sucesso fora do Brasil e, por isso, atraiu muitos pesquisadores interessados em estudar os diferentes usos para a fruta. Atrás do valor de mercado que os produtos feitos a partir do cupuaçu poderiam garantir, uma empresa britânica pediu registro em 1998 da primeira patente para usar o extrato do fruto em uma composição cosmética. Em 2001, uma empresa japonesa tentou patentear outras formas de uso. A exclusividade desejada pelos estrangeiros não foi aceita pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e outras indústrias nacionais que desenvolviam produtos com o cupuaçu. Isso porque, caso fosse registrada a patente no exterior, a indústria brasileira ficaria impedida de comercializar qualquer produto com o cupuaçu. A disputa foi parar na Justiça e a tentativa de patente no Japão foi barrada definitivamente em 2008, quando o ex-presidente Lula sancionou uma determinação garantindo a legitimidade brasileira da fruta, bem como o direito de uso para empresas nacionais.