segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cientistas reclamam do processo para patentear suas criações


Segue matéria de hoje sobre as queixas de cientistas nacionais com a burocracia das patentes, e com certas distorções como estrangeiros que patenteiam plantas brasileiras (como a Body Shop inglesa e a Asahi, japonesa).

Na verdade, o problema não é só a burocracia, ou um estrangeiro se apresentar como dono do cupuaçu. É mais profundo. É a vida e o conhecimento terem dono e só chegarem a nós quando, e do jeito, que for do interesse de um monopólio.

Hoje muitos tratam como troglodita o PhD formado com dinheiro público que teima em produzir tecnologia para a sociedade, em vez de direcioná-la
(já que as indústrias nacionais em geral não se interessam) para o gosto de uma multinacional.

A lógica subjacente à postura dos consultados nesta matéria é que a inovação, mesmo produzida por instituições e com dinheiro públicos, não irá para a frente no Século XXI se não for para vendê-la com direitos de exclusividade.

Por medo de perderem o tal do bonde da história, porém, deixam de enxergar outros meios e caminhos.

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Correio Braziliense, 24/10/2011 08:00

Cientistas reclamam do longo e burocrático processo para patentear criações
Marcelo da Fonseca

Belo Horizonte — Contratos de inovação assinados com grandes empresas, investimentos e parcerias firmados com apoio do governo federal e a satisfação de descobrir algo que pode mudar a vida de muita gente. São muitos os motivos que levam professores e cientistas a passar várias horas dentro de laboratórios atrás de fórmulas e produtos nunca antes criados ou imaginados. No entanto, para conseguir os resultados e, até mesmo, o apoio que poderá ser fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, é preciso percorrer um longo caminho de estudos e passar por uma das etapas mais difíceis que vai garantir a proteção e os direitos de uso do invento: a concessão da patente. O processo pode durar mais de uma década e, em alguns casos, a cobrança por resultados acadêmicos nos estudos desenvolvidos nas universidades se torna um obstáculo a mais para os cientistas.

O físico Daniel Medeiros integra a equipe do Núcleo de Inovação Tecnológica (Pro-NIT) da Universidade de São Paulo (USP) e conhece bem os desafios que os pesquisadores enfrentam no dia a dia. “A maior dificuldade é que, durante o processo de pedido das patentes, nosso objetivo é proteger o produto; mas a universidade tem a missão de gerar conhecimento, e as pesquisas acadêmicas precisam ser publicadas e divulgadas. Só que, ao publicar um artigo ou uma tese sobre o tema, acabamos perdendo a novidade, um requisito importante na análise do pedido”, explica. Medeiros aponta também a grande diferença entre os incentivos para pesquisadores brasileiros e de outros países, onde a relação entre os centros de excelência e as grandes empresas é mais avançada. “Percebo que a preocupação com as inovações recebe muito mais atenção dos grupos privados. Claro, o Brasil está avançando bastante, com cada vez mais apoio para novas tecnologias, mas por aqui o mercado ainda não consegue absorver nossos trabalhos como no exterior”, pontua.

Para o professor e pesquisador na área de química orgânica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Cláudio Luis Donnici, além da demora para receber as definições sobre os pedidos, outro ponto que atrasa os cientistas brasileiros é a falta de conhecimento sobre muitos termos exigidos na parte burocrática do processo. “São termos legais e jurídicos que não temos o costume de usar, por isso é fundamental que as universidades invistam em pró-reitorias e centros de tecnologia com capacidade de auxiliar os professores e os alunos. No nosso caso, essa ajuda permitiu que passássemos pela parte técnica e elaborássemos um relatório que enviamos às esferas nacionais. É preciso que mais centros atuem dessa forma”, alerta o pesquisador.

No primeiro semestre deste ano, Donnici participou de um grupo de estudos que descobriu um composto capaz de dissolver praticamente qualquer material orgânico ou inorgânico sem alterar a composição química de uma amostra  submetida a análise química. Isso significa que o novo composto poderá, por exemplo, mostrar se um cosmético ou um alimento contém metal pesado ou se a casca de uma árvore a ser usada para produzir medicamentos está contaminada. Os pesquisadores já depositaram o pedido de patente, e a substância, registrada com o nome de Universol, está pronta para ser aplicada e ter sua tecnologia transferida a empresas que poderão produzir e comercializar o produto em larga escala.

Quadro atual

No Brasil, o movimento mais intenso, segundo dados do Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (Inpi), está ligado às pesquisas de indústria farmacêutica, mas as grandes empresas de outros setores têm aumentado significativamente a participação nos registros de patentes. Hoje, a Petrobras tem 1.253 pedidos de patentes no Brasil e 2.530 no exterior. A Vale, por sua vez, tem cerca de 2,4 mil pedidos, entre contratos de inovação e direitos de preferência para o uso de tecnologias.

O Inpi é o responsável pelo gerenciamento dos inventos licenciados no país. A legislação brasileira determina que a titularidade de todas as tecnologias desenvolvidas por professores, alunos e servidores pertence às instituições e, quando negociados os direitos de cada invenção, os recursos são divididos entre as partes envolvidas.

Em Minas Gerais, a Coordenadoria de Transferência de Inovação Tecnológica (CTIT), centro ligado à UFMG, conduziu, desde 2003, 82 licenciamentos que incluem não apenas patentes, mas outras formas de propriedade intelectual, como know-how, software e desenho industrial. “Além das propriedades já garantidas, temos outras 15 em fase de negociação, com grande interesse de países como França, Japão e Estados Unidos nas áreas de biotecnologia, fármacos e saúde animal. Estamos conseguindo facilitar ao máximo o processo de registro dos pesquisadores e fazemos a mediação com o setor industrial para buscar interesse e apoio, por meio de convênios de parceria ou contratos de transferência tecnológica”, explica o diretor do CTIT, o físico Ado Jorio de Vasconcelos.

Etapas

1 - Pesquisadores que criam alguma tecnologia ou projeto levam suas propostas até os institutos e as coordenadorias das instituições onde trabalham e cadastram a ideia apresentada.
 
2 - Uma equipe técnica dos centros de pesquisa fica responsável pela análise da proposta — viabilidade, interesse de mercado e pesquisas relacionadas na área — e oferece apoio na parte burocrática para oficializar o pedido de registro.
 
3 - A invenção ou pesquisa é inscrita pelas instituições regionais no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi).
 
4 - A autarquia federal vinculada ao Ministério de Indústria e Comércio Exterior fica responsável por registrar o pedido e conceder autorização para a patente. Em média, essa etapa dura entre oito e 10 anos, mas a autorização para que os pesquisadores possam negociar a invenção pode sair até um ano e meio depois do pedido.
 
5 - A negociação com empresas é feita com apoio dos centros de pesquisas das empresas ou das universidades. Podem ser firmados convênios de pesquisa (quando a empresa patrocina a pesquisa antes do resultado), convênios de transferência (a tecnologia é repassada para a empresa, com exclusividade ou não) ou sobre condições de royalties (caso em que os inventores recebem recursos pelo uso, por parte das empresas, de suas invenções).

Para saber mais:

Briga pelo cupuaçu

Fruto de uma árvore de pequeno a médio porte que pertence à mesma família do cacau, o cupuaçu foi uma das fontes primárias de alimento na Floresta Amazônica para populações indígenas. A polpa, que é usada para fazer sucos, cremes e geleias, faz grande sucesso fora do Brasil e, por isso, atraiu muitos pesquisadores interessados em estudar os diferentes usos para a fruta. Atrás do valor de mercado que os produtos feitos a partir do cupuaçu poderiam garantir, uma empresa britânica pediu registro em 1998 da primeira patente para usar o extrato do fruto em uma composição cosmética. Em 2001, uma empresa japonesa tentou patentear outras formas de uso. A exclusividade desejada pelos estrangeiros não foi aceita pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e outras indústrias nacionais que desenvolviam produtos com o cupuaçu. Isso porque, caso fosse registrada a patente no exterior, a indústria brasileira ficaria impedida de comercializar qualquer produto com o cupuaçu. A disputa foi parar na Justiça e a tentativa de patente no Japão foi barrada definitivamente em 2008, quando o ex-presidente Lula sancionou uma determinação garantindo a legitimidade brasileira da fruta, bem como o direito de uso para empresas nacionais.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Mania de grandeza da dupla Celso e Lula?

Folha de São Paulo, Poder - Toda Mídia, 27 de maio de 2011

"VELHA GUARDA OCIDENTAL"
No enunciado do "New York Times" para a cúpula na França, ontem, "Crise do euro assombra G8". Afirma que o grupo "foi ofuscado pelo G20, em que emergentes como a China, a Índia, o Brasil e a África do Sul também têm assento".
E destaca, de David Shorr, da Stanley Foundation, que o G8 é hoje um "clube da velha guarda ocidental", já sem "os atores-chave para enfrentar os grandes desafios".

Campanha Bric Na chamada do "Wall Street Journal" para sua entrevista com a francesa Christine Lagarde, ela "prepara turnê global pelo FMI". Segundo o jornal, fará "paradas obrigatórias na China, no Brasil e na Índia". E o diretor brasileiro no Fundo, Paulo Nogueira Batista Jr., considerou "positivo que ela troque ideias com as autoridades brasileiras". E no enunciado do "FT" para sua entrevista com Lagarde, ela "oferece maior voz para os emergentes".

Dinheiro dos outros A "Economist", no editorial "Hora de mudar", diz que "europeu, mesmo talentoso, não deve chefiar o FMI". Chama a convenção de ser europeu "uma vergonha" e cobra um Fundo "imparcial".
E Simon Johnson, ex-economista-chefe do FMI, escreve no "NYT" que Lagarde é "explicitamente uma representante dos interesses da zona do euro" e "personifica a estratégia de apostar na ressurreição europeia com o dinheiro dos outros".

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Na Bahia já soltaram o mosquito transgênico

Dizem que não há problema porque só soltam o macho, milhares dos quais são separados de milhares de fêmeas, por tamanho (o macho é maior). Qual será a margem de erro nessa seleção? E o que acontece com as fêmeas -- mesmo que poucas -- que pela estatística sem dúvida serão soltas também no meio ambiente e cruzarão com mosquitos normais? Isso o jornalista da Folha não perguntou.

Na Tailândia recentemente houve um escândalo nacional que impediu a liberação de milhares desses animais transgênicos no ambiente, sem chance de "recall" no caso de algum problema, ou desastre. Em Juazeiro já aconteceu. E agora? "Hope for the best"????
São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011 

Bahia inicia uso de inseto transgênico contra dengue 

Cerca de 10 mil mosquitos foram soltos; "missão" é fecundar fêmea normal

Filhotes que resultam do cruzamento morrem antes de chegar à fase adulta, o que reduziria a população do animal 

Muhammad Mahdi Karim/Wikipedia Commons
Mosquito Aedes aegypti, que transmite a dengue

LUIZ GUSTAVO CRISTINO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA 

Em busca de um novo método para a erradicação do mosquito Aedes aegypti, pesquisadores estão soltando uma versão transgênica do inseto em bairros de Juazeiro (BA). O bicho geneticamente modificado gera filhotes que não chegam à fase adulta.
A iniciativa, coordenada pela bióloga Margareth Capurro, pesquisadora da USP, foi aprovada pela CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança).
Os cientistas misturam material genético de drosófilas, conhecidas popularmente como moscas-das-frutas, ao do A. aegypti.
A transformação faz com que seus filhotes produzam uma proteína que causa sua morte ainda no estágio larval ou de pupa (a fase de casulo).
Em laboratório, os embriões são produzidos pela Biofábrica Moscamed, em Juazeiro (BA), e identificados com um marcador fluorescente. Por diferença de tamanho em relação às fêmeas, os machos -que alimentam-se de néctar e sucos vegetais- são isolados antes da fase adulta, quando serão liberados no ambiente.
Eles serão soltos em cinco bairros da cidade. Lá, concorrerão para procriarem com as fêmeas, o que, em longo prazo, deve reduzir a população local dos insetos.
A previsão é de liberação de 50 mil mosquitos por semana nesses locais, e a conclusão do estudo está prevista para 18 meses após o início do procedimento.
Os primeiros 10 mil mosquitos já foram soltos na última segunda-feira, no bairro de Itaberaba. Amanhã, serão liberados mais 8.000 no mesmo local.

RISCOS
A princípio, a liberação de espécimes do Aedes aegypti nessas regiões apresentaria dois riscos: aumento da incidência da dengue e desequilíbrio ambiental.
Ambos, diz Capurro, são praticamente nulos. "Os mosquitos machos não se alimentam de sangue, por isso não transmitem a doença, e sua única função é copular com as fêmeas", afirma.
Além disso, o A. aegypti não é nativo do Brasil e encontrou um ambiente ideal porque não possui predadores naturais por aqui.
"Os mosquitos transgênicos vivem por aproximadamente sete dias e não deixam descendentes. Para retirá-los da população de insetos do local, basta parar de abastecê-la com novos indivíduos."
Ela destaca as vantagens do procedimento. Apesar de mais caro, pode substituir inseticidas e larvicidas, reduzindo o lançamento de possíveis poluentes no ambiente.
"O que essas substâncias fazem é selecionar indivíduos resistentes, que não morrem com os produtos", aponta a bióloga.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

UOL Notícias, 11/01/2011

O escândalo da dioxina: as maquinações criminosas da indústria de alimentos

El País
Andrea Brandt, Michael Fröhlingsdorf, Nils Klawitter, Julia Koch, Michael Loeckx e Udo Ludwig 
 
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Acompanhe a cobertura atualizada deste escândalo, em português:
http://migreme.net/10i1
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  • Pesquisadora observa ovos contaminados com dioxina; 4.700 fazendas foram fechadas Pesquisadora observa ovos contaminados com dioxina; 4.700 fazendas foram fechadas
Mais uma vez, alimentos de origem animal contaminados estão ameaçando a saúde dos consumidores. O sistema de controle é muito frouxo, e a política de informações é um desastre. O mais recente susto com as dioxinas revela que as autoridades alemãs aprenderam muito pouco com os escândalos referentes à segurança dos alimentos no passado.
Bélgica, primavera de 1999: inspetores descobrem altos níveis de dioxina, bem como de outras toxinas, em ovos. Uma companhia de reciclagem de óleo e gordura havia fornecido ao produtor de alimentos gorduras que continham elevados índices de dioxina e da substância tóxica acabou por contaminar frangos, suínos e bovinos – chegando dessa forma aos estômagos dos consumidores alemães.
Os prejuízos foram bilionários. O ministro da Saúde da Alemanha ficou indignado com os belgas, e a União Europeia anunciou mudanças drásticas.
Alemanha, inverno de 2011: ovos se acumulam nas prateleiras dos supermercados, sem serem vendidos. As mães temem dar leite de vaca aos filhos. As autoridades fecharam quase 5.000 unidades de produção e ordenaram que milhares de ovos fossem destruídos. Cerca de 150 mil toneladas de alimentos foram contaminados com gordura contendo dioxina fornecida por um produtor de Uetersen, perto de Hamburgo.
A ministra alemã da Proteção ao Consumidor, Ilse Aigner, diz achar “totalmente deplorável o fato de um setor produtivo inteiro ter sido afetado por infratores individuais”. Aigner, que é da conservadora União Social-Cristã na Baviera (em alemão, Christlich-Soziale Union in Bayern, ou CSU), o partido bávaro aliado da União Democrata-Cristã (em alemão, Christlich-Demokratische Union, ou CDU), da chanceler Angela Merkel, anuncia conversações com os Estados alemães com o objetivo de aperfeiçoar no futuro a proteção do consumidor.
As imagens, as reclamações e as promessas de melhoria são todas muitos similares.
A Alemanha tem agora nas mãos um novo escândalo na área de segurança de alimentos. E mais uma vez isso é anunciado como um caso isolado. Mas, seria isso de fato a irresponsabilidade isolada de uma única companhia? Os especialistas acreditam que a posição de Aigner é ingênua. Existem muitos sinais de deficiências dentro do sistema.
As reformas radicais no setor agropecuário, que o ex-ministro da Proteção do Consumidor, Renate Künast, um membro do Partido Verde (em alemão, Bündnis 90/Die Grünen), solicitou de forma bastante enérgica em 2001 foram há muito esquecidas. Atualmente, a indústria de alimentos baseia-se tanto quanto as outras indústrias na divisão de trabalho. O fator mais importante é o preço. Para serem capazes de vender ovos, carne e frango pelo menor preço possível em supermercados que oferecem descontos ao consumidor, os produtores são obrigados a cortar os custos, especialmente no que se refere à alimentação dos animais.
Uma indústria com uma reputação abalada
Certos setores da indústria de alimentos de origem animal não são particularmente escrupulosos, e estão dispostos a acrescentar aos seus produtos qualquer coisa que traga a promessa de reduzir os custos – e fazem tudo o que podem para driblar as regulamentações inconvenientes.
É difícil encontrar em Berlim alguém que deseje prejudicar o sucesso financeiro da indústria alimentícia alemã, o quarto maior setor econômico do país. Este setor fatura atualmente um quarto dos seus 150 bilhões de euros (US$ 194 bilhões, R$ 327,8 bilhões) em vendas anuais em outros países.
Sob tais circunstâncias, que político ousaria impor leis mais rígidas e regulações mais estritas que provavelmente implicariam em um aumento de custos para os produtores alemães?
O mais recente escândalo no setor de alimentos envolvendo gorduras contaminadas com dioxina demonstra o quão negligentemente as autoridades lidam com uma indústria que tem uma reputação abalada por incontáveis infrações. “Até agora, nós vínhamos lidando basicamente com produtos alimentares, e não com rações para animais”, admite Eberhard Haunhorst, diretor do Departamento de Proteção do Consumidor e Segurança dos Alimentos do Estado da Baixa Saxônia, no norte do país.
No ano passado, os funcionários de Haunhorst coletaram apenas 2.500 amostras aleatórias de 3.600 produtores comerciais de rações. A situação não é muito melhor no resto do país, onde os inspetores realizaram 14.557 inspeções em 2010. Um número mais ou menos igual de exames antidoping foram feitos em uma quantidade relativamente pequena de atletas alemães de primeira linha.
Carecendo de pessoal suficiente para realizar as suas próprias inspeções, as agências governamentais recorrem às autoinspeções feitas pelas companhias. Segundo as regulamentações algo vagas, toda companhia tem que garantir que os produtos que ela coloca em circulação são seguros. Segundo Haunhorst, não existem regulamentações especificando o que exatamente os produtores de ração precisam inspecionar. Embora várias companhias tenham criado o seu próprio sistema de garantia de qualidade, nenhum desses sistemas têm caráter obrigatório, e os testes regulares para determinar a presença de dioxinas não são explicitamente exigidos.
Johannes Remmel, membro do Partido Verde e ministro do Meio Ambiente e da Proteção do Consumidor do Estado da Renânia do Norte Vestfália, no oeste da Alemanha, está pedindo aos seus congêneres de outros Estados que criem legislações que imporiam uma regulamentação mais estrita sobre os produtores de alimentos. No entanto, Estados tradicionalmente produtores de produtos agropecuários como a Baixa Saxônia e a Baviera não estão dispostos a implementar mudanças significativas das práticas existentes. Eles esperam que a oposição que vêm fazendo em breve convença o seu combativo congênere a cair em si.
Maquinações da Indústria
Harles e Jentzsch, a companhia de reciclagem de óleo e gordura da região próxima a Hamburgo, que encontra-se no cerne do escândalo, é um exemplo claro daquilo que acontece quando os padrões de conduta exigidos dos produtores são lenientes. Quando o diretor executivo Siegfriend Sievert deparou-se com os resultados iniciais do teste de dioxina, a sua primeira reação foi minimizar o problema, o que é uma prática comum na indústria sempre que informações internas desagradáveis tornam-se públicas. As chamadas “gorduras técnicas” (gorduras já utilizadas, impróprias para o consumo) acabam se misturando inadvertidamente às gorduras utilizadas na alimentação animal, diz ele. Sievert chamou isso de um erro lamentável – nada mais do que um simples erro.
No entanto, é surpreendente constatar que um fornecedor de rações para animais esteja manipulando essas chamadas gorduras técnicas, que não poder ser utilizadas na cadeira alimentar. Ao comentar a questão das gorduras técnicas, Siebert afirmou que a sua companhia mantém “uma linha de produção paralela voltada para a indústria de papel”. E quando lhe perguntamos por que essa parte do negócio não é mencionada no website da companhia, ele declarou a “Der Spiegel”: “Neste momento é difícil determinar qual é o motivo”.
Wolfgang N. trabalha na indústria de rações há mais de 15 anos. Ele conhece a companhia de Uetersen e todos os outros negócios da indústria, e está familiarizado com as maquinações da empresa. Segundo ele, não é nenhuma coincidência o fato de esta companhia, com os seus 15 empregados, estar neste momento sob os holofotes da mídia. Ele diz que muitas empresas menores e de tamanho médio recorrem a truques e operações nebulosas para esconder a verdade. As companhias maiores têm condições de inspecionar as matérias primas que compram, diz N., e elas fazem isso para evitarem escândalos que poderiam prejudicar os seus negócios.
Mas até mesmo esses líderes de mercado não inspecionam todas as remessas de matérias-primas adquiridas, explica N. Os testes, incluindo aquele para determinar se há dioxinas no produto, são caros, custando cerca de 400 euros (R$ 873) cada, e o resultado demora várias semanas. Ele diz que uma possível maneira de evitar as atenções é diluir as gorduras prejudiciais com outros materiais a fim de manter os níveis de contaminação abaixo dos limites máximos permitidos no produto final.
Reduzindo custos
Especialistas como N. também criticam o fato de vários recicladores de gorduras também lidarem com resíduos especiais. Não é de surpreender que dificilmente alguma outra indústria extraia tanto resíduo quando a indústria de rações. Ela transforma resíduos em alimentos e reduz animais a sistemas de eliminação de resíduos. Nesse sistema, pode facilmente ocorrer que penas de aves e serragem coletadas no piso das granjas sejam utilizadas como material para dar mais volume às rações. Não existem limites para a audácia de algumas empresas da indústria de rações, que são conhecidas por usarem resíduos de esgotos nos seus produtos e de fazerem experiências com esterco líquido e água usada por curtumes.
Ironicamente, o atual escândalo teve início com uma companhia que acreditava-se que seria a resposta para os escândalos de contaminação por dioxinas ocorridos na virada do século. A Petrotec Biodiesel é especializada em transformar gordura de cozinha em combustível não agressivo ao meio ambiente. A companhia opera uma moderna refinaria em Emden, no noroeste da Alemanha, desde 2000. Já no início da década de noventa a empresa oferecia uma alternativa limpa à prática anterior de aproveitar resíduos em decomposição oriundos da indústria alimentícia acrescentando-os às rações para animais.
A empresa recebeu um estímulo em 2002, quando foi instituída a proibição, em toda a Europa, do acréscimo de gorduras de cozinha usadas a rações. Roger Boeing, diretor da Petrotec até o ano passado, afirma que sempre esteve claro que os subprodutos da operação de refino “não poderiam ser acrescentados a rações”. Afinal, acrescenta ele, ninguém poderia descartar uma contaminação das gorduras já usadas que estavam sendo fornecidas à indústria de rações. A Petrotec não realizava testes porque traços de dioxinas são um fator irrelevante no biodiesel, explica Boeing.
Companhias como a Petrotec obtêm a sua matéria prima do mundo inteiro. Como resultado disso, remessas dos Estados Unidos são às vezes processadas na Alemanha. E como as gorduras são movimentadas em um determinado terreno, a contaminação pode ocorrer facilmente durante o transporte. Wolfgang N., o conhecedor da indústria alega que as companhias de transporte procuram reduzir custos deixando de limpar rotineiramente os seus tambores e tanques nos intervalos entre transportes.
Parte dois: “Isso só pode ser o resultado de iniciativas criminosas”
A origem das dioxinas que no momento estão arruinando os negócios de milhares de fabricantes de produtos agropecuários alemães ainda é desconhecida. Quando os especialistas do Instituto de Inspeção Química e Veterinária de Münster, no noroeste da Alemanha, examinaram as amostras, eles ficaram surpresos. “Nós nunca antes tínhamos presenciado esse padrão específico”, diz Axel Preuss, o diretor do instituto. Segundo Preuss, é altamente improvável que a toxina tenha sido produzida durante o processamento na Petrotec. Agora o Estado da Renânia do Norte Vestfália pretende encomendar um estudo para determinar de onde veio a dioxina.
É possível que o mistério jamais seja resolvido. Entretanto, os políticos estão no momento discutindo publicamente as mudanças que segundo eles são urgentemente necessárias, embora alguns deles tivessem a princípio subestimado completamente a dimensão do escândalo da contaminação de alimentos. Vários ministérios nos Estados alemães afetados sabiam antes do Natal que um novo escândalo envolvendo as dioxinas estava em formação. Até mesmo o Ministério Federal da Agricultura sabia do que estava acontecendo, mas mesmo assim a informação foi sonegada. A agência da União Europeia encarregada desse tipo de problema também não foi imediatamente informada.
Na antevéspera do Ano Novo, David McAllister, o governador do Estado da Baixa Saxônia e membro da conservadora União Democrata-Cristã, estava sentado na sala de maquiagem em um estúdio de televisão da estação de televisão alemã NDR, preparando-se para a gravação da sua mensagem de fim de ano, quando recebeu um telefonema de Düsseldorf. Do outro lado da linha estava o ministro do Meio Ambiente da Renânia do Norte Vestfália que, reagindo à descoberta das dioxinas, queria que McAllister lhe fornecesse as listas completas de fornecedores dos produtores suspeitos de rações na Baixa Saxônia.
Remmel já havia passado dias tentando obter informações importantes de autoridades em Hanover, a capital da Baixa Saxônia. Mas foi só depois que ele telefonou para McAllister que algo foi feito a respeito do seu pedido. Sete dias após a divulgação de que havia dioxinas nos alimentos, as listas de fornecedores foram finalmente recebidas na Renânia do Norte Vestfália.
A avalanche não foi provocada pelas agências de inspeção governamentais ou pela fábrica de reciclagem de gorduras, Harles und Jentzsch, mas sim por um cliente que anunciou a descoberta de dioxinas. Uma inspeção laboratorial na Wulfa-Mast, uma fábrica de rações, também revelou níveis significativamente elevados de dioxinas em dois lotes de suas rações para galinhas poedeiras, segundo o Ministério da Agricultura em Hanover. Em 23 de dezembro, o Estado da Baixa Saxônia fechou as granjas para as quais essas rações haviam sido enviadas.
Uma iniciativa lucrativa
A seguir os inspetores seguiram para um depósito da Harles und Jentzsch em Bösel, uma cidade da Baixa Saxônia, onde os funcionários tinham uma explicação simples para o problema. Eles disseram que gorduras técnicas também também eram armazenadas no local, e que uma válvula no tanque número 11 provavelmente havia sido incorretamente operada durante um processo de mistura em 11 de novembro. Foi um erro humano, afirmaram os funcionários, e como resultado disso a gordura técnica pode ter sido acidentalmente misturada à gordura destinada à fabricação de rações. Aparentemente a gordura contaminada foi fornecida a seis outros produtores de rações.
Depois disso as autoridades intervieram. No entanto, elas acreditavam que a percentagem de gordura nas amostras de ração eram tão pequenas que, apesar do teor de dioxinas, os limites máximos legais aparentemente não teriam sido ultrapassados.
Quando os inspetores da Baixa Saxônia visitaram novamente o armazém de Bösel em 29 de dezembro, eles descobriram ácidos graxos técnicos impróprios para consumo em outros tanques de gorduras destinadas à fabricação de rações. O mesmo problema foi descoberto na sede da companhia em Uetersen, onde quatro tanques estavam cheios de gordura contaminada. Desta vez, no entanto, o problema não podia mais ser atribuído a erro humano.
“Isso só pode ser o resultado de iniciativas criminosas”, denunciou Hans-Michael Goldmann, membro do Partido Democrático Liberal (em alemão, Freie Demokratische Partei, ou FDP), a agremiação que defende os interesses do empresariado alemão, e presidente do Comitê de Proteção do Consumidor no parlamento alemão, o Bundestag. “E eu acreditava que essa história de acrescentar resíduos a rações fosse coisa do passado”. Aparentemente esse era um negócio lucrativo, já que as gorduras técnicas custam cerca de um terço do valor das gorduras apropriadas para a fabricação de rações.
A Associação Alemã de Alimentos de Origem Animal gaba-se de que o caso foi descoberto por meio de “autoinspeções e medidas de segurança”, afirmando que isso prova que, afinal de contas, o sistema de fato funciona.
Mas não inteiramente. A Harles und Jentzsch inspecionou os seus ácidos graxos três vezes no ano passado. Em cada uma dessas autoinspeções, descobriu-se que os níveis de dioxinas eram substancialmente mais elevados do que o máximo permitido, que é de 0,75 nanogramas por quilograma. Especificamente, esses testes revelaram níveis de dioxinas de 1,60 nanogramas por quilograma em 19 de março, 1,40 nanogramas em 21 de junho e 1,44 nanograma em 7 de outubro. Mas em nenhum desses casos a companhia informou as autoridades, ou sequer notificou os consumidores ou recolheu os produtos do mercado.
Quando os inspetores do governo visitaram a Harles und Jentzsch em 28 de julho, eles aparentemente não receberam os resultados dos testes. Quando eles testaram as suas próprias amostras em busca de dioxinas, os resultados teriam sido negativos. Os inspetores não chegaram sequer a suspeitar quando viram notas de entrega indicando que os ácidos graxos comprados não eram apropriados para a fabricação de rações. Agora a diretoria da empresa afirma que também foram vendidas gorduras para a indústria de fabricação de papel.
Inspeções “orientadas para o risco”
Aparentemente as autoridades confiavam na companhia. Devido às reduções de pessoal, os inspetores do Estado de Schleswig-Holstein, no norte da Alemanha, trabalhavam de forma “orientada para o risco”, significando que as companhias que atraíam maior atenção eram inspecionadas mais frequentemente do que aquelas sob as quais não pairavam suspeitas. Como resultado disso, a Harles und Jentzsch poderia esperar apenas uma inspeção por ano, ainda que a companhia forneça matéria prima para quase todas as fábricas de rações misturadas no norte da Alemanha. Após a visita em julho, sabendo que seria improvável uma nova inspeção durante algum tempo, a companhia sentiu-se segura para continuar adulterando as gorduras sem temer ser detectada.
O fato de o escândalo ter provocado relativamente poucos efeitos sobre a saúde dos consumidores até agora pode ser atribuído às propriedades da dioxina. Embora a substância seja considerada altamente tóxica, os ovos e a carne contaminados não representam um perigo específico. “As concentrações detectadas são tão baixas que só podem ocorrer problemas em casos de consumo regular durante um grande período de tempo”, explica Helmut Schafft, encarregado das questões relativas à alimentação de animais no Instituto Federal de Avaliação de Risco, em Berlim.
O limite estabelecido pela União Europeia de três picogramas de dioxina por grama de gordura em cada ovo só foi ultrapassado em uns poucos casos, e até mesmo esse limite é contestado entre os especialistas. A Organização Mundial de Saúde (OMS), por exemplo, considera “tolerável” que um indivíduo ingira quatro picogramas de dioxina por quilograma de massa corporal por dia.
Dessa forma, uma pessoa que pesa 75 quilogramas, poderia ingerir sem problemas uma dose diária de 300 picogramas, o que significaria uma grande quantidade de ovos contaminados, mas apenas umas poucas refeições à base de peixes como enguia e salmão, que muitas vezes contêm quantidades relativamente elevadas de dioxina. “As dioxinas estão em toda parte, e todo mundo ingere automaticamente quantidades diminutas todos os dias”, afirma o cientista Schafft.
Necessidade de mais transparência
Estritamente falando, até mesmo os ovos orgânicos, que estão se tornando cada vez mais populares, são contraproducentes se as galinhas ciscam em solo contaminado. “Os ovos de galinhas que ciscam no terreiro da casa da vovó e em volta do lixo já possuem cinco picogramas de dioxina”, admite Rudolf Joost-Meyer zu Bakum, diretor da Sociedade de Nutrição Animal Ecológica. E o mais natural de todos os alimentos, que é especialmente saudável, teria sido proibido caso os limites máximos de dioxina estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde fossem o único padrão utilizado: os níveis de dioxina no leite materno são muitas vezes superiores aos limites da Organização Mundial de Saúde.
Para complicar ainda mais a situação, as autoridades fazem com que seja difícil para os consumidores determinarem qual o risco a que já foram expostos. Os nomes das companhias e os códigos nos seus ovos precisam ser “revelados imediatamente”, afirma Günther Hörmann, diretor da agência de proteção ao consumidor com sede em Hamburgo. Isso é algo de trivial na Escandinávia, diz Hörmann, e um procedimento desse tipo também seria possível segundo a legislação alemã.
“Mas foi aí que autoridades nervosas se atrapalharam consultando os seus departamentos jurídicos”, reclama Hörmann.
Faz três semanas que o escândalo veio a público, mas até o momento só foram anunciados os códigos de ovos de dez empresas afetadas.
Tradução: UOL